A vida de Jetsün Milarepa, o poeta e santo Tibetano, através de suas canções e poemas
Uma das figuras mais emblemáticas do budismo tibetano, sua obra consta com o impressionante número de 100 mil canções/poemas. Em novo livro traduzido do inglês para o português e disponibilizado para download gratuito, é possível ler 60 delas, até então inéditas em português.
Jetsün Milarepa não é uma figura muito conhecida fora dos círculos budistas, mas no Tibete, seu país de origem, ele é exaltado da mesma maneira e com tanta intensidade quanto Jesus Cristo em países ocidentais. Sua fama vem de sua vida errática, mística e inspiradora. Uma de suas particularidades era o uso de poemas em formato de canções que ele cantava às mais diferentes pessoas, com o intuito de fazer com elas compreendessem de maneira simples conceitos budistas muitas vezes complexos. É dito que todos aqueles que o ouviam, tornavam-se praticantes budistas. No Brasil, o livro “Milarepa, A História de um Yogi Tibetano”, escrito por W. Y. Evans-Wentz, lançado pela Editora Pensamento, é a única fonte bibliográfica de sua vida e foi através dele que conheci sua fascinante história. Infelizmente, a maior parte de sua obra, que conta com um acervo de 100 mil canções/poemas, permanece restrita aos tibetanos e às pouquíssimas traduções internacionais.
Na língua inglesa, há um número maior de obras sobre sua vida e seus ensinamentos, sendo algumas traduzidas diretamente do tibetano. Uma delas, organizada pelo site Buddha Net e traduzida por Garma C. C. Chang, compila 60 canções do mago e santo tibetano e pode ser baixada de maneira gratuita aqui. Uma leitura riquíssima, o livro traz ao público o coração dos ensinamentos deste importante meditador solitário e excêntrico. Em formato de poemas, Milarepa prega o Dharma* para as mais diferentes pessoas, de emissários de importantes reis até a caçadores rudes. O que salta aos olhos do leitor é a maneira como ele adapta o seu discurso às mais diferentes ocasiões e pessoas, além da maneira muitas vezes provocativa e direta com que Jetsün se dirigia aos seus ouvintes.
Fascinado com seus poemas & canções, decidi traduzir o livro inteiro ao português e trazer assim, um pouco mais dessa figura tão emblemática para a nossa língua, enquanto espero por uma tradução profissional vinda do alguma editora brasileira. Mais do que um desafio, traduzir o livro foi também um modo que achei de me manter ocupado e de preservar minha saúde mental durante a pandemia. Posso dizer que, após dois meses, cheguei a um resultado satisfatório, embora certamente distante do trabalho de um tradutor profissional. Foi uma trabalho realizado apenas pela força de vontade e o desejo de compartilhar o que tanto me foi benéfico. Traduzi-lo foi também uma maneira de compreender mais profundamente toda a sabedoria contida nas palavras desse grande mestre budista. Deixarei um link para o download do livro no final dessa postagem,
Mas antes disso, quem foi realmente, Milarepa?
A vida de Jetsün Milarepa, assim como a de muitas importantes figuras religiosas, foi intensa e cheia de altos e baixos. Nascido no seio de uma rica família de camponeses, por volta de 1040, o jovem Tubhaga, como era conhecido, aprendeu logo cedo uma importante lição sobre a impermanência. Seu pai faleceu precocemente, partindo sem preparar um testamento. Dessa forma, as riquezas da família foram apropriadas por seu tio, que nunca repassou um tostão do dinheiro a Milarepa e sua família, que passaram então a serem meros servos de seu tio, que os tratava de maneira desumana e humilhante. Milarepa fala abertamente sobre isso na primeira canção do livro:
Como nossos méritos e virtudes eram poucos,
e o efeito-causa do karma passado não perdoa a ninguém,
Meu pai, Mila, faleceu (muito cedo em sua vida).
As ilusórias posses e bens de nossa família
Foram passadas para minha tia e meu tio,
Para quem eu e minha mãe tivemos de servir.
Eles nos deram comidas que serviriam apenas para cachorros;
O vento gelado perfurava nossas velhas roupas
Nossa pele congelava e nossos corpos eram adormecidos (pelo frio).
Com frequência eu era espancado por meu tio
E suportava sua cruel punição.
Difícil era evitar o temperamento doentio de dia minha tia.
Após uma infância miserável, marcado por maus tratos, como se alimentar muitas vezes de restos de comida que eram oferecidos apenas aos cachorros, sofrer de graves problemas de saúde, devido ao frio intenso do inverno tibetano — é dito que o tio não os deixava entrar em casa e os obrigava a trabalhar mesmo sob temperaturas abaixo de zero — o jovem cansou e decidiu vingar-se.
Para isso, foi atrás dos mestres de magia negra tibetanos, que lhe ensinaram as artes mágicas do Tu, Ser e Ded. Em pouco tempo, Milarepa aprimorou tais artes e através dela trouxe grande desgraça e sofrimento àqueles que haviam tornado sua vida um inferno. Através de fortes feitiços, o jovem mago trouxe tempestades enormes ao vilarejo de seus tios, causou terremotos, chuvas de pedra etc., sendo que no fim tinha sob seus ombros o peso de algumas dezenas de mortes. Após isso, Milarepa aprendeu outra lição: sua vingança, apesar de bem sucedida, não trouxe de volta o seu pai e sua riqueza, não eliminou seu ódio e dor, apenas o tornou mais miserável.
Desesperado, eu fui até os Lamas³
Yundun e Rondunlaga
Com quem aprimorei as mágicas artes do Tu,
Ser and Ded⁴
Na presença de meu tio e minha tia, trouxe
Grandes desastres para seus vilarejos e parentes
Com o que, mais tarde, sofri um grande remorso.
Então ouvi falar da fama de Marpa, o renomado Tradutor,
Que, abençoado pelos santos Naropa e Medripa,
Estava vivendo no vilarejo acima do Rio do Sul.
Profundamente arrependido, Milarepa, como descreve no poema acima, foi atrás de Marpa (O Tradutor), grande mestre responsável por trazer o Budismo ao Tibete, pedir sua instrução e ajuda. Conta-se que Marpa o recusou nos primeiros encontros, alegando que o jovem Milarepa não possuía o necessário para ser um de seus discípulos.
Com insistência, Milarepa conseguiu amolecer o coração de Marpa, fazendo com que ele considerasse sua aceitação como discípulo. Mas, para isso, ele teve de passar por diversos testes e provações, que incluem a famosa anedota “da construção de nove casas”. Cada vez que Milarepa terminava de construir uma casa, Marpa, alegando não se lembrar de ter ordenado a construção ou usando de outra desculpa, apenas para testar seu comprometimento e resiliência, pedia para que Jetsün a colocasse abaixo. E assim Jetsün fazia, destruindo a casa que tanto trabalhara para construir, para logo então começar a construir outra, dessa vez sob ordens de Marpa, que dias depois, com a casa pronta, repetia a ordem de colocá-la abaixo. Após a incessante provação, que duraram meses e resultaram em nove casas construídas e derrubadas, Milarepa chegou a um estágio de profundo desespero, em que não acreditava mais ser possível receber os ensinamentos de Marpa. Somente quando já estava completamente desiludido e a caminho do suicídio, Marpa o aceitou como discípulo. Assim começava a vida espiritual de Milarepa, que culminaria na obtenção do mais alto grau de Iluminação, a superação da dualidade, do bem e do mal, o completo e verdadeiro Nirvana.
Esse é um breve resumo do começo da história de Milarepa, de sua vida antes de se tornar o grande Iogue* tibetano, que meditou em sua caverna por 12 anos até atingir a Iluminação. Para ler mais sobre sua vida, recomendo sua biografia, que pode ser encontrada sem dificuldade em pdf. Sites budistas, como o Sobre Budismo, também apresentam um resumo técnico de sua vida. Agora, é minha intenção, que aqueles que desejem ir mais a fundo em sua história, leiam o livro que traduzi com muito amor e dedicação, pois através dele é possível ter uma visão mais ampla da vida de Milarepa, que ultrapassa os detalhes biográficos e vai ao centro de suas experiências e ensinamentos. Muitas deles podem pegar o leitor desprevenido, o estilo direto e franco do Jetusün é uma de suas particularidades, tornando seus poemas em formato de canções (ou vice-versa?) em algo íntimo, que mexe com o leitor de maneira única. Como aperitivo, deixo aqui uma de minhas canções favoritas do livro:
A Canção do Efêmero e da Desilusão
Quando a natureza efêmera da vida é sentida com profundidade no coração de uma pessoa
Seus pensamentos e desejos agirão naturalmente de acordo com o Dharma.
Se repetida e continuamente uma pessoa pensar sobre a morte,
Facilmente conseguirá dominar os demônios da preguiça.
Ninguém sabe quando a morte cairá sobre si –
Assim como aquela pobre mulher na noite passada!
Rechungpa, não seja desagradável, ouça seu Guru!
Observe: todas as manifestações do mundo exterior
São efêmeras como um sonho da noite passada!
Completamente perdido em tristeza,
Sente-se aquele que pensa sobre esse sonho passageiro.
Rechungpa, terá você acordado completamente
Dessa grande estupefação?
Oh, quanto mais penso nisso,
Maior é meu desejo de dedicar-me ao Buda e ao Dharma.
O anseio por prazer do corpo humano é como um credor ingrato.
Qualquer bem que lhe faça,
Sempre desejará mais,
Plantando assim, as sementes da dor.
O corpo humano é uma bolsa de sujeira e imundícies;
Nunca sinta orgulho dele, Rechungpa,
Mas ouça minha canção!
Quando eu olho para meu corpo,
Eu o vejo como a miragem de uma cidade;
Mesmo que possa durar por um tempo,
Está destinado a extinção.
Quando penso nisso,
Meu coração se enche de dor!
Rechungpa, você não gostaria de se libertar do Samsara?
Oh, quanto mais eu penso nisso,
Maior é meu desejo de dedicar-me ao Buda e ao Dharma!
Uma pessoa viciada nunca poder obter felicidade.
Pensamentos errantes são a causa de todos os arrependimentos,
Más disposições são a causa de todas as misérias,
Nunca seja voraz, oh Rechungpa,
Mas ouça minha canção!
Quando olho para trás e vejo minha mente apegada,
Ela me parece um pardal frágil que em breve morrerá na floresta –
Sem lar e sem lugar para dormir;
Quando penso nisso, meu coração se enche de dor!
Rechungpa, você se deixará dominar pela má vontade?
Oh, quanto mais eu penso nisso,
Maior é meu desejo de dedicar-me ao Buda e ao Dharma!
A vida humana é tão precária
Quanto um único fio de cabelo no rabo de um cavalo
Balançando prestes a arrebentar;
Pode, também, ser exterminada a qualquer hora,
Como aquela senhora na noite passada!
Não se agarre a essa vida, Rechungpa,
Mas ouça minha canção!
Quando observo minha respiração interiormente
Eu a vejo como transiente, semelhante à névoa;
Ela pode desaparecer a qualquer momento no nada.
Quando eu penso nisso, meu coração se enche de dor.
Rechungpa, você não quer dominar
Suas inseguranças agora?
Oh, quanto mais eu penso nisso,
Maior é meu desejo de dedicar-me ao Buda e ao Dharma.
Ser próximo de seus parentes só causa ódio.
O caso dessa velha senhora é uma lição muito boa.
Rechungpa, pare de pensar em seus desejos,
E ouça minha canção!
Quando olho para meus amigos e conjugues,
Eles parecem como transeuntes num bazar;
O encontro com eles é apenas temporário,
Mas a separação é eterna!
Quando eu penso nisso, meu coração se enche de dor.
Rechungpa, você não quer deixar de lado
Todas as associações mundanas?
Oh, quanto mais eu penso nisso,
Com mais força penso em Buda e no Dharma.
Um homem rico raramente aproveita
A riqueza que conquistou;
Isso é um exemplo da zombaria do Karma e do Samsara,
Dinheiro e joias conquistados através da mesquinharia e labuta
São como a bolsa de comida daquela velha mulher.
Não tenha cobiça, Rechungpa,
Mas ouça minha canção!
Quando olho para a fortuna de um rico
Ela me parece como o mel para as abelhas –
Trabalho pesado, que serve apenas para o proveito dos outros,
É esse o fruto de seu labor.
Quando penso nisso, meu coração se enche de dor.
Rechungpa, você não quer abrir
O tesouro que existe em sua mente?
Oh, quanto mais penso nisso,
Maior é meu desejo de dedicar-me ao Buda e Seus Ensinamentos.
Para baixar o livro basta clicar aqui.
Uma boa leitura!
- Dharma: O Dharma budista diz respeito aos ensinamentos do Buddha Gautama, e é uma espécie de guia para a pessoa alcançar a verdade e a compreensão da vida. Pode ser chamado também de “lei natural” ou “lei cósmica”.
- Asceta que busca atingir a sabedoria pela prática da ioga e meditação solitária.