Maior revelação de 2022, Bala Desejo é a cara da nova MPB: burguesa, saudosista e alienada

Maicon Schlosser
6 min readDec 22, 2022

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Com um olhar voltado para o passado, a banda entrega trabalho que peca pela falta de autenticidade e que além disso escancara privilégios de classe

Zé Ibarra, Julia Mestre, Dora Morelenbaum e Lucas Lemos, integrantes da banda Bala Desejo. Foto: divulgação.

Em 1968, Caetano Veloso e os Mutantes subiram ao palco do Festival Internacional na Canção dispostos a escandalizar. Cantando “Proibido Proibir”, que repetia o lema da juventude francesa que virou Paris de cabeça para baixo naquele mesmo ano, Caetano, alongou a performance o máximo que pode, acompanhado das experimentações lisérgicas dos Mutantes.

Não demorou muito para a plateia, que um ano antes já havia vaiado Caetano pelo uso das guitarras e dos ritmos não convencionais em “Alegria, Alegria”, começar a vaiar novamente, dessa vez com ainda mais força. Entorpecido pelo momento, Caetano iniciou um discurso histórico e ensandecido, em que questionava a plateia: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?”.

A ocasião até hoje relembrada pela coragem de Caetano, demonstra que para além daquela apresentação, o tropicalismo e a nova música popular brasileira que surgia naquela momento, representada por Caetano, Gilberto Gil, Gal Costa, Novos Baianos, Os Mutantes, entre outros, era um ato de resistência e mais do que isso, um ato de rompimento com o passado, com o conservadorismo e com o que se esperava dos músicos brasileiros naquela época.

Hoje, quase 60 anos depois, o cenário é completamente diferente dentro do que se considera a “nova MPB”. Podemos pegar como exemplo a banda Bala Desejo, “que já nasceu na grade de grandes festivais”, embora tenha sido formada em 2021, pelos músicos e amigos de escola Zé Ibarra, Lucas Lemos, Julia Mestre e Dora Morelenbaum.

Todos já possuíam carreiras solos bem sucedidas antes de formarem a banda e vêm de famílias de classe média alta, presumidamente, pelo fato de terem sido colegas de escola de ninguém menos que Tom Veloso, filho de Caetano. Além disso, Dora Morelenbaum é filha dos músicos Jacques Morelenbaum e Paula Morelenbaum, respeitadíssimos e com sólida e bem estabelecida carreira musical. Portanto, não estamos falando de músicos “do povo”, mas sim de pessoas que desfrutam de diversos privilégios e cujas carreiras certamente se beneficiaram disso.

Bala Desejo, segundo os músicos, é “filha da pandemia”, que em palavras contidas, eles dizem ter feito bem a banda. Tudo começou quando os quatro decidiram “largar tudo” para morar na mesma casa. Então, após algumas lives tocando juntos, surgiu o convite do Coala Festival para que a “banda”, que nem disco gravado tinha ainda, tocasse na edição de 2021. Assim, com o adiamento do festival devido a pandemia, surgiu a ideia (e o convite) de gravar um disco pela Coala Records. O resultado foi “SIM SIM SIM”, que é fruto de uma “imersão criativa, num sítio, em Minas”.

Capa do disco “SIM SIM SIM”, lançado em Vinil, para um toque vintage extra.

Todas as informações descritas até agora seriam irrelevantes se o disco em questão fosse ancorado no indie, acostumado com bandas de jovens de classe média alta cantando sobre todos os desafios de ser um jovem de classe média alta. Mas não, “SIM SIM SIM” é um disco completamente ancorado na musicalidade tropicalista e da MPB, evocando a todo momento os seus representantes, como referências para lá de óbvias e que em nenhum momento do disco conseguem ser superadas, para dar partida a algo novo.

De um saudosismo exagerado, que esbarra no cafona e na alienação total ao período em que vivemos, tanto artisticamente quando socialmente, as músicas do disco, embora bem executadas, não soam genuínas, dependendo quase que totalmente de suas inspirações para se sustentar, o que causa um constante efeito deja vu ao longo da audição. Sem qualquer viés político, Bala Desejo higieniza o tropicalismo e substitui a revolta pelo desejo e pelo tesão, sendo o ápice de ousadia do disco o momento em Julia Mestre descaradamente abusa da inspiração de Rita Lee para dizer que “vai lamber geral”, na faixa Lambe Lambe.

“Baile de Máscaras (Recarnaval)”, outra cópia descarada de Rita Lee, é segundo os integrantes, a música que dá tônica do disco: “É pandemia, mas é carnaval”, uma fala que demonstra a completa alienação da burguesia em relação ao restante da população. Enquanto a maior parte dos brasileiros sofria com a crise humanitária e socioeconômica causada pela pandemia, Lucas, Dora, Zé e Julia, brincavam de ser tropicalistas e pulavam carnaval em um sítio no interior Minas Gerais.

Com tudo que vem acontecendo no Brasil nos últimos anos, talvez a maior proeza de Bala Desejo seja a de fazer um disco sem NENHUM, digo, NENHUM, viés político. O que por si só não é uma obrigação, mas se você decide criar um disco cuja maior fonte de inspiração é o tropicalismo e a MPB, gêneros marcados pela resistência política, pela luta contra o conservadorismo e pela ideia de revolução musical, e mesmo assim decide manter-se apolítico, algo de estranho há. Este é o tipo de neutralidade que você só pode esperar de quem não é afetado por nada do que acontece fora de seus espaços de privilégio e mordomias, ou seja, de burgueses.

Se na década de 60 a luta era contra a ditadura e a música era uma das armas usadas no combate, hoje parece que a nova MPB e os neo-tropicalistas estão perfeitamente em paz com tudo que acontece no país. Artisticamente, temem as experimentações da mesma maneira que temem a política. “SIM SIM SIM” sofre de um problema quase crônico de boa parte dos novos representantes da MPB: se prender a uma fórmula e repeti-la exaustivamente, fazendo crer que a música popular brasileira precisa ser a mesma de sessenta anos atrás.

O resultado é um disco em que tudo é inegavelmente bem produzido e trabalhado, mas cuja falta de originalidade é broxante, especialmente quando vem de músicos jovens, com excelente bagagem musical e que possuem os meios, o dinheiro e os contatos suficientes para fazerem algo muito mais ousado e original. Poderia dizer que ouvir o álbum é como olhar para um doce que parece muito bom, que tem uma ótima aparência e cuja descrição apresenta uma mistura interessante de sabores, mas que quando você decide comer, é apenas doce demais e enjoativo.

“A questão das referências setentistas vem menos por uma questão estética (que acho que para muitas pessoas é o que grita de cara) e mais por uma questão das entranhas musicais”, diz Zé Ibarra. Foto: divulgação.

Mas, no entanto, é quase impossível criticar Bala Desejo e dizer que eles estão fazendo algo de errado quando vemos tudo que a banda conquistou em menos de um ano. Num período de meses, a banda ganhou um Grammy Latino de Melhor Disco Pop, fez turnê por todo Brasil, passou pela Europa e fez um show no Rock in Rio. Vendo dessa forma, é simples assumir que na verdade, eles estão no caminho certo. Com aceitação do público e da crítica, Bala Desejo é certamente a maior revelação do ano na música brasileira, o que comprova três coisas: 1) o apelo pop do disco e da banda. 2) a conivência da crítica brasileira ao conservadorismo que ronda a atual MPB. 3) e o quanto os privilégios de classe ainda interferem nas chances oferecidas aos músicos no Brasil (a velha questão do QI — quem indica).

Seguindo a lógica, a impressão que fica é a de que se os integrantes do Bala Desejo tivessem nascido em outra época, estariam na plateia vaiando Caetano e os Mutantes por estarem criando algo verdadeiramente novo e original, sem saudosismo e fórmulas prontas. Assim, demasiadamente apegados ao passado e sem ao menos tentar algo diferente, a banda se contenta em celebrar o que já foi feito e propagar o vazio experimental que existe na música brasileira hoje, propensa a recompensar aqueles que “honram os clássicos”, expressão genérica que serve para que parte da crítica e público justifique a falta de um movimento realmente novo, de vanguarda e transgressor na música nacional.

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Maicon Schlosser

Estudante de jornalismo metido a escritor. Por aqui encontrarás resenhas, crônicas, reportagens, textos sobre música, espiritualidade, política e muito mais.